Igreja e Migrações: o dever do acolhimento

Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa 1. Na Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz, de 1 de Janeiro deste ano, o Papa João Paulo II escreveu: “A saída de grandes multidões duma região do planeta para outra, que muitas vezes constitui uma dramática odisseia humana para as pessoas nelas envolvidas, tem (…) fortes repercussões nos países de origem e de destino. O acolhimento reservado aos migrantes pelos países que os recebem e a capacidade de eles se integrarem no novo ambiente humano servem também como parâmetro para avaliar a capacidade de diálogo entre as diferentes culturas” (n.° 12). Portugal, tradicionalmente caracterizado pelo fenómeno da emigração, tem‑se defrontado nos últimos anos com a novidade de fluxos migratórios que, de forma sobretudo ilegal, atravessam as suas fronteiras. Em sentido geográfico oposto à saída de milhares de nossos compatriotas, a imigração para o nosso país constitui um dado novo da realidade nacional. Mais que fenómeno de circunstância, a migração é hoje uma constante da existência em âmbito europeu e mundial. As preocupações do tempo presente motivam-nos a encarar o acontecimento da imigração à luz da nossa missão evangelizadora, sem esquecermos as aflições da emigração. Perspectivas sociológicas apontam, hoje, Portugal como plataforma de rotação de gentes e de trabalho, englobada numa teia de relações internacionais, vasta e complexa, definindo-o como espaço de dupla migração. Desde 1975 registam-se: um primeiro fluxo imigratório até 1980, proveniente sobretudo dos países africanos de língua oficial portuguesa; um segundo, na década de 80, com presença significativa de asiáticos e de sul americanos, especialmente brasileiros, devido às novas condições de mobilidade decorrentes da entrada de Portugal na Comunidade Europeia em 1986; a primeira metade da década de 90 revela uma terceira fase com o crescimento da população estrangeira legalizada (mercê dos dois processos de regularização extraordinária), nomeadamente de origem africana, mas também onde começa a ganhar expressão um surto de origem europeia. Na última década aumentou sempre o número de estrangeiros: de cerca de 87 000 em 1986, passou para 114 000 em 1991, para 173 000 em 1996 e para cerca de 191 000 em 1999. Nesta data, a maioria era oriunda dos países africanos de língua oficial portuguesa. Acrescente-se a estes dados oficiais a mole imensa de gente que se arrasta na clandestinidade. É notório o crescimento de trabalhadores ilegais, atraídos por um conjunto de obras no domínio da construção civil, aumentando, a partir de 1996, a presença de estrangeiros vindos dos países de Leste. Neste período, o número de entradas começou a suplantar de modo assinalável o das saídas, registando-se o carácter geralmente temporário da emigração em confronto com o afluxo da imigração. Encontramo-nos diante dum problema de grandes dimensões, sobretudo desde o momento em que o Tratado de Amesterdão transferiu para a União Europeia as competências dos Estados membros em matéria de asilo e emigração. Portugal aparece, pois, como rota de destino e de acolhimento. Recusando a prática da “Europa fortaleza” e não iludindo as dificuldades do modelo solidário com que se procura identificar a União Europeia, acentue‑se que, no domínio duma política global, se exige de cada Estado membro um forte sentido de integração e acolhimento. Só desta forma se poderão viabilizar a legalização dos imigrantes e o desmantelamento de organizações que se dedicam ao tráfico humano. As estimativas oficiais referem a existência de cerca de três milhões de clandestinos no espaço comunitário. A mão de obra, qualificada ou não, é hoje absolutamente necessária entre nós e em muitos países europeus, dados os índices do envelhecimento populacional e da baixa de natalidade. A vinda maciça de imigrantes é com frequência acompanhada duma prática económico-social de trabalho precário e de baixos salários. Por outro lado, em certa opinião pública verifica-se uma reacção negativa perante o cidadão estrangeiro, traduzida em antipatia e receio competitivo. A ausência duma inserção integrada nas periferias suburbanas agrava o fenómeno da exclusão. O racismo e a xenofobia derivam muito destas situações. A superação destas dificuldades só pode ser garantida por um modelo de desenvolvimento respeitador da dignidade humana do imigrante. Segundo a Comissão Europeia, a quem foram apresentadas sugestões para decisão no Conselho Europeu a realizar em Bruxelas nos finais deste ano, as pessoas admitidas devem ter, em termos gerais, os mesmos direitos e obrigações que os nacionais da União, mas esses direitos podem ser graduais em proporção com o período de permanência. Parece claro, no entanto, que a União Europeia continua a carecer de um quadro jurídico comum e de vontade política em matéria de admissão de imigrados e refugiados. 2. O Episcopado Português continuará a velar pelo atendimento pastoral dos nossos emigrantes espalhados pelo mundo, designadamente pelo ministério de capelães e, em alguns países, de leigos assistentes pastorais. A comemoração, no próximo ano, dos quarenta anos da fundação da Obra Católica Portuguesa das Migrações constituirá uma oportunidade para avaliar o trabalho pastoral nessa área. Na presente conjuntura, porém, a Igreja, fiel à sua missão de justiça e caridade, sente a urgência de prestar especial atenção aos imigrantes que em número tão elevado estão a afluir ao nosso país. Todos têm direito a condições de vida e de trabalho humanas e justas. No complexo problema de acesso e de enquadramento legal noutro país, deve-se ter em conta que a harmonização do respeito por cada imigrante e por todos os nacionais depende do exame da situação territorial e social do país escolhido. Em qualquer caso, os regulamentos sobre a imigração não podem subestimar os critérios éticos. O primado da justiça fundamenta sempre a verdadeira transformação. É que não se trata apenas de dar o supérfluo a quem passa necessidade, mas de “ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo de desenvolvimento económico e humano, o que só será possível através da alteração dos estilos de vida, dos modelos de produção e de consumo, das estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades” (Mensagem para a Celebração do Dia Mundial da Paz, 2001, n.° 17; Carta Encíclica Centesimus annus, n.° 58). Abrir fronteiras, facilitando a entrada de imigrantes, é o passo menos árduo na acção solidária. Mais exigente e eficaz é alterar modelos de existência, os quais, pelo crescimento da produtividade e pela sua justa distribuição, irão disponibilizar mais e melhores meios aos protagonistas dum mesmo espaço. Conforme lembra o Papa João Paulo II na Mensagem para o 87.º Dia Mundial das Migrações, neste ano de 2001, “há tantos interesses implicados nas leis de cada país, que são precisas normas internacionais capazes de regular os direitos de cada um e impedir decisões unilaterais que sejam prejudiciais aos mais fracos” (n.º 3). Numa perspectiva de acção comum, os representantes das Comissões Episcopais Europeias das Migrações, reunidos em Junho de 1999, em Jasi (Roménia), formularam as seguintes propostas: criação de Centros de investigação para estudo das interpelações da mobilidade à teologia e ao trabalho pastoral; preocupação dos meios de comunicação social da Igreja pela situação dos imigrantes e informação sobre os esforços realizados ao seu serviço; intervenção da Igreja no debate público sobre imigrantes; e plena aceitação por parte dos católicos para viverem numa sociedade pluricultural. A aplicação destas propostas contribuirá de maneira significativa para a melhoria das condições de vida dos imigrantes e da sua integração harmoniosa nos países de acolhimento. 3. Com a entrada em vigor, em 22 de Janeiro, do Decreto-Lei n° 4/2001, de 10 de Janeiro, o qual altera o Decreto-Lei n° 244/98, de 8 de Agosto, no respeitante às condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, iniciou‑se uma nova fase da legalização de imigrantes. O diploma reforça a defesa e a prática de direitos, entre os quais os de salário, habitação, trabalho, saúde, segurança social, reunificação do aglomerado familiar e respeito pela identidade cultural específica dos diferentes grupos de imigrantes. No início do processo de regularização releve-se a necessidade da certificação de uma proposta de contrato laboral com a informação da Inspecção–Geral do Trabalho, da qual depende a concessão de permanência pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, válida por um ano e prorrogável até um máximo de cinco, após o que poderá ser requerida a autorização de residência. É indiscutível, de forma genérica, a melhoria qualitativa deste diploma, designadamente na possibilidade de obtenção de um estatuto residencial em comparação com a disposição anterior, segundo a qual, após os primeiros anos, o cidadão devia regressar ao país de origem. São de destacar os dispositivos penais contra a exploração da clandestinidade, a função laboral assente em bases jurídicas, e, já após a entrada em vigor do novo Decreto-Lei, a viabilização de situações de trabalho através da garantia prestada por um sindicato, na ausência de um contrato por parte da entidade empregadora. Apesar das alterações introduzidas pelo novo diploma, os imigrantes continuam a deparar com sérios obstáculos no processo de legalização. Enumeramos alguns mais notórios: a falta de informação sobre o processo regularizador; o receio de se identificarem; a recusa de sectores patronais em possibilitarem um contrato de trabalho (para o que concorrem o incumprimento de disposições laborais, a exploração de mão de obra barata e até a situação ilegal de algumas empresas perante o fisco e a segurança social e mesmo por não possuírem o necessário alvará); o trabalho precário; a retenção de passaportes; a venda de contratos de trabalho; a falta de pagamento dos salários, a retenção parcial dos mesmos ou a prática de remunerações muito baixas; a inexistência de associações de imigrantes que defendam os seus legítimos direitos e interesses; o desconhecimento da língua; a dependência esclavagista de angariadores, de empresas intermediárias que alugam pessoal ou de agências de transporte; a ausência da família; e o alojamento em condições indignas. Como contributo para o aperfeiçoamento e a aplicação dos princípios consignados no Decreto-Lei n.º 4/2001, referimos alguns aspectos que suscitam preocupação. Propõe-se, de forma genérica, o estatuto de permanência como solução ajustada, em confronto com a não autorização de residência. Por um lado, a permanência restringe a reunificação do agregado familiar; por outro, a situação de instabilidade e a incerteza do futuro proporcionam condições de exploração. A venda de contratos de trabalho é um triste exemplo de aproveitamento indevido desta disposição legal. De igual forma se deve questionar a não concessão de residência a quem, desde há largos anos, habita e serve o país, apesar de atestada a sua conduta por entidades idóneas. Se a intenção legal é propor, por motivos pedagógicos, um período comprovativo de qualidades de cidadania, é demasiadamente longa essa duração em muitos casos. Fica-se com a impressão de se tratar de uma medida selectiva. A impossibilidade de legalização de trabalhadores por conta própria é sinal de que os imigrantes nem sequer podem ser patrões de si mesmos. No plano da aplicação da legislação, têm sido manifestas as dificuldades de contacto, por parte de pessoas e instituições privadas, com as entidades a quem incumbe o bom ofício de transmitir informações sobre esta matéria. Por outro lado, deverá ser encontrada solução para a ausência de passaporte, em muitíssimos casos devido a extorsão criminosa, ou de idêntico documento comprovativo do país de origem. A inexistência de instâncias diplomáticas de alguns países agrava esta anomalia. 4. Diante de situações marcadas pela solidão da família, pelo afã em adquirir no mais curto espaço de tempo o necessário económico que garanta o regresso, pela sobrecarga do trabalho, e, fundamentalmente, pelo desrespeito de direitos elementares do ser humano, propomo-nos acompanhar a situação dos imigrantes em Portugal com vista a melhorar o acolhimento e a integração dos mesmos nas comunidades cristãs e na sociedade em geral. Enalteça-se um conjunto de acções solidárias já promovidas por instituições e grupos das mais diversas proveniências. São exemplos desse empenhamento: as informações veiculadas na língua própria; a busca e a colocação profissional junto de instâncias empresariais; o acompanhamento directo das condições laborais e sociais, sem motivações próprias de “intermediários”; o acolhimento de pessoas e grupos em espaços de convívio; a organização de cursos de língua portuguesa; as celebrações litúrgicas segundo a respectiva confissão; e a presença de um sacerdote católico ucraniano, em Lisboa, ao serviço dos seus concidadãos. As orientações gerais da Igreja e a experiência de numerosas comunidades cristãs e de outras instâncias no trabalho com imigrantes aconselham uma coordenação mais eficaz da acção desenvolvida nesta área. Para isso urge criar ou revitalizar os Secretariados Diocesanos de Migrações, dotados das parcerias necessárias, com o objectivo de constituir Centros de Apoio Jurídico e Social. 5. De acordo com a Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz de 1 de Janeiro de 2001, n.º 22, desejaríamos que a nossa reflexão e as nossas propostas, secundadas pelo generoso acolhimento prestado aos imigrantes no nosso país, correspondessem ao apelo do Papa João Paulo II: Sede artífices de uma nova humanidade, onde irmãos e irmãs, todos membros da mesma família, possam finalmente viver em paz. Lisboa, 13 de Junho de 2001

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