X Simpósio do Clero – Palavra de saudação

Fátima, 29-08-2022

1. Saudação

Saúdo com alegria todos os participantes neste X Simpósio do Clero – Bispos, Presbíteros, Diáconos, seminaristas e outros fiéis – simpósio que vai ganhando uma dimensão referencial para o clero e para a Igreja em Portugal.

Em tempos de mudança como aqueles que vivemos, encontros de reflexão como este que estamos a iniciar são fundamentais, para afirmar a comunhão, aprofundar as raízes da nossa vocação e do serviço que prestamos na Igreja. Mas devem proporcionar igualmente um esforço de compreensão do mundo, em constante e profunda mudança. E, em tempos de mudança, como diz o Papa Francisco, é importante voltar à força das origens, para escutar e entender o que é essencial e para afirmar uma renovada fidelidade, atenta à necessidade de novas formas da afirmação da vitalidade do Espírito que nos guia.

O binómio da identidade relacional e do ministério sinodal do presbítero, a que se dedica o simpósio (Identidade Relacional e Ministério Sinodal do Presbítero), constitui um horizonte apropriado para esta renovação. Afirmar a identidade como relação constitui uma libertação de si próprio para ir ao encontro do OUTRO (com Maiúscula) e dos outros, irmãos e irmãs, de forma amiga e dinâmica, pois Deus, sendo sempre Ele mesmo, não se revela de modo estático, mas assumiu carne humana, na sua fragilidade e evolução, acompanhando-a pelo seu Espírito como semente que deve crescer e fermento que deve levedar a massa. É ao serviço desse Evangelho transformador que se encontra o nosso ministério sinodal, de modo a ser agente do Espírito que fermenta e faz crescer, através dos dons que promove, para a constante renovação da Igreja e do mundo.

 

2. Um momento particularmente desafiador

Esta reflexão tem lugar num momento muito complexo e importante da história humana e da Igreja, com desafios enormes e muitos deles novos, que requerem novas abordagens e novas atitudes. Uma das primeiras palavras que ouvi do Papa Francisco, por ele dirigidas aos superiores das congregações religiosas, foi: “Não procurem responder aos tempos de hoje com receitas de ontem: não vai dar certo”. De facto, deparamo-nos hoje com problemas que no passado até podiam não existir. Vale especialmente para o nosso tempo aquilo que Jesus diz aos discípulos, falando da atuação deles na história: “Quando vos levarem para serdes entregues, não vos inquieteis com o que haveis de dizer; dizei o que vos for dado nessa hora, pois não sereis vós a falar, mas sim o Espírito Santo”. Isto significa que não temos receitas já feitas, mas temos a Palavra de Deus, atuante numa história dinâmica e criativa ao longo dos séculos, com erros e nuvens, com repensamentos e brilhantes realizações, com pecadores e santos… num peregrinar que acompanhou o caminho da humanidade à qual pertencemos e sempre foi dinamizado e guiado pelo Espírito do Senhor Jesus. Somos filhos desta humanidade e desta Igreja e somos hoje chamados a assumir o nosso papel, para que, transformados e fortalecidos pelo mesmo Espírito, possamos dar testemunho do Senhor Jesus, imitando a sua predileção pelos pobres e pecadores e colaborar na construção de uma sociedade melhor, a caminho do mundo verdadeiramente novo; esse sim, dado diretamente por Deus.

 

3. Abusos sexuais de menores

É a esta luz que gostaria de dizer umas palavras sobre um tema que está presente na realidade social e que constitui uma questão incontornável e desafiadora, também na Igreja, em Portugal e no mundo: a questão dos abusos sexuais de crianças, transversal na sociedade e que assume um significado especial na Igreja, pelo que nos diz respeito. É importante o tema, desde logo pela existência de abusos, pelo drama inesquecível das vítimas, pelo que isso significa para a vida da Igreja e para a sua missão, pela perceção social da gravidade de tais crimes que nos envergonham, pelo destaque que tem nos meios de comunicação, pelos desafios que coloca a todos nós. Não faço uma análise aprofundada da questão, que seria descabida neste contexto, mas gostaria igualmente que ela não estivesse ausente da nossa reflexão destes dias, sob pena de perdermos um significativo tópico do “hoje” da realidade da Igreja e do mundo. Sobretudo, porque os crimes de abuso de crianças na Igreja são frequentemente vistos como o exemplo de uma atitude demasiado hierárquica, clerical, resistente à mudança e ao tema deste Simpósio que é justamente a identidade relacional e do ministério sinodal do presbítero.

 

A existência dos abusos

A primeira realidade a ter em conta é que existem no presente e existiram no passado abusos de menores, como também é sensato reconhecer que não conseguiremos, apesar de todos os esforços, evitar que continuem a ter lugar no futuro. Admitir esta realidade é um passo sensato para poder lidar corretamente com ela. Significa assumir, com humilde realismo, que a Igreja e cada um dos seus membros, também os que nela têm funções de responsabilidade, não são perfeitos nem devem pretender parecê-lo. Para todos, reconhecer a existência destes comportamentos graves e de dramáticas consequências é doloroso e enche-nos mesmo de vergonha e pesar. Mas é um passo fundamental para aceitar a nossa debilidade como oportunidade para crescer e melhorar; como disponibilidade para mudar atitudes, procedimentos e orientações, à luz da nossa identidade e da nossa missão.

Muitos ou poucos que sejam os abusos, lançar luz sobre essa realidade, dar voz e acolhimento às vítimas e estudar os contornos destas anomalias é um ato de justiça e de libertação para todos. Significa, em primeiro lugar, assumir que se trata de comportamentos inadmissíveis, pelo mal que causam e pela clara negação dos valores do Evangelho e do compromisso de quem se dispõe a estar ao serviço dos mais pequenos e vulneráveis, na Igreja e na sociedade. Jesus dizia mesmo: “Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, seria preferível que lhe pendurassem ao pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar” (Mt 18,6). Mas significa também a vontade firme e absoluta de assumir um código de conduta e de procedimentos que mitiguem a reincidência destes abusos, uniformize as medidas a tomar quando eles existirem e devolvam a confiança na Igreja por parte da sociedade.

Tentar esconder esta realidade, para além de contrariar os princípios elementares da justiça para com as vítimas e impedir o seu necessário tratamento, não ajuda ao esforço de erradicação destes males. A verdade é libertadora para todos. O segredo não deve servir para guardar e sigilar coisas nefandas. Deve sim ser usado para que a justiça não se faça nas ruas, mas proceda com rigor e eficiência, tanto na Igreja como nos tribunais civis, evitando condenar inocentes na praça pública, antes de qualquer processo digno. Para isso serve o segredo de justiça: não para impedir que a justiça seja feita, mas para que ela tenha lugar com rigor e dignidade, tanto para as vítimas como para os acusados.

É ao serviço desta clareza e purificação que foi criada a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI). Sinto uma grande confiança e gratidão para com as pessoas que, com o Dr. Pedro Strecht, estão a levar por diante esta tarefa, que lhes foi pedida pela CEP e que está a ser conduzida com independência, competência e credibilidade. Não se trata de nenhuma “caça às bruxas” nem de uma campanha contra ninguém, mas de um caminho necessário de identificação de males que existiram e continuam presentes, para que possamos assumi-los na sua realidade dolorosa, como processo de conversão e de libertação para todos.

 

O drama das vítimas

Duas razões fundamentais moveram a Igreja em Portugal para empreender este processo de reconhecimento e de clarificação: o drama das vítimas dos abusos de menores e a contradição que eles significam com a identidade e a missão da Igreja e daqueles que a servem.

Em primeiro lugar, move-nos o drama das vítimas de abusos sexuais de crianças, adolescentes e adultos vulneráveis. Cada um deles não é apenas um número de estatística, mas uma realidade dramática de uma pessoa frágil, em processo de crescimento, que sofre, muitas vezes em silêncio e com dramática violência, atentados à sua integridade e ao seu futuro. O testemunho das vítimas e o concurso das ciências humanas têm vindo a tornar claro, sobretudo nos últimos decénios, o caráter dramático destes fenómenos, não apenas pelos atos físicos sofridos, mas sobretudo pelos efeitos devastadores sobre toda a vida destas pessoas que dependem das relações que a cercam, para se desenvolverem. A maior parte dos abusos tem lugar precisamente no ambiente familiar, onde a criança sente maior confiança e onde espera encontrar o afeto que lhe é tão necessário como o pão para a boca. A Igreja com os seus líderes, a escola com os seus mestres de ciência e de vida, as instituições sociais de apoio constituem igualmente locais sensíveis aos quais é preciso deitar especial atenção.

Dar atenção às vítimas e escutá-las é o primeiro passo de um processo de libertação, de justiça e de dignidade. Sinto, por isso, uma profunda gratidão para com as pessoas que, na sua infância ou adolescência, foram vítimas de abusos por membros da Igreja e tiveram a coragem de denunciar e de falar disso. Essa voz despertou e vai despertando o coração das pessoas de bem para que o sofrimento não seja silenciado nem esquecido e seja feita justiça à dignidade que foi calcada aos pés, para que se possam encontrar caminhos possíveis de futuro. Recordar o mal pode significar um reavivar do sofrimento, mas pode ser também ocasião de liberdade e de esperança. A CI foi a estrutura que julgámos mais conveniente para criar as condições de dar voz ao silêncio destas pessoas. Por isso continuamos a encorajar todas as pessoas que sofreram estes crimes a comunicar com a CI e denunciar essas atitudes.

 

Uma Igreja que cuida e que se cuida

Em segundo lugar, temos de ter consciência de que os abusos de menores contradizem redondamente a identidade e o modo de agir da Igreja e dos seus membros. Ela tem como missão continuar o estilo de relação de Jesus, na sua atenção preferencial para com os pobres, os que sofrem, as crianças, os que são discriminados, os pecadores. A identidade da Igreja, da qual fazemos parte, vem da capacidade de criar um espaço de acolhimento, de reconciliação e de cuidado dos mais frágeis e excluídos.

Os abusos, qualquer que seja o seu número, contradizem radicalmente esta identidade. Pelo mal que causam às pessoas e à comunidade, cada um é também um sofrimento e uma derrota para toda a Igreja. Por isso, não pode haver tolerância nem encobrimento de casos destes. Impõe-se um caminho claro no interior da Igreja e uma colaboração com as autoridades competentes para averiguar quaisquer ocorrências, segundo os processos legais do país, com as medidas legais e penais previstas na Igreja e no ordenamento jurídico civil.

Para além desses processos, é justo que este seja também um caminho de pedido de perdão sincero a cada pessoa que foi vítima destes abusos. Não devia ter acontecido nunca e em nenhum lugar, mas pedimos desculpa sentida por ter acontecido na Igreja, na qual confiaram e da qual esperavam um apoio carinhoso e não um abuso cruel e perturbador. Esse pedido de desculpa significa também disponibilidade para acolher e colaborar, na medida do possível, com as vítimas no restabelecimento da sua saúde e dignidade, para que possam ser senhoras do seu futuro, com liberdade, felicidade e esperança.

A partir das conclusões do estudo em curso, será necessário rever e adaptar as medidas de prevenção e formação, particularmente das pessoas que se ocupam dos jovens, a fim de promover uma cultura mais bem capacitada para cuidar do seu desenvolvimento pessoal, social e na fé. Será bom olhar para os resultados do estudo, rever as orientações existentes onde se afigurar necessário, a fim de valorizar o papel da criança; apostar na prevenção, a partir das Comissões Diocesanas e da Equipa de Coordenação Nacional; implementar a nova “Ratio Nationalis Istitutionis Sacerdotalis” para sacerdotes e religiosos e melhorar igualmente a formação de leigos e leigas, nas dimensões humana, espiritual, afetiva e cultural, de acordo com os desafios e exigências do nosso tempo. Isto, sem esquecer o cuidado pelas vítimas e igualmente por aqueles que as causam.

 

Reconhecer com humildade e louvar com coração agradecido

Reconhecer com humildade e verdade estes casos penosos e tratá-los convenientemente é a melhor forma de fazer justiça, de colaborar para uma cultura de transparência e segurança para crianças, adolescentes e adultos vulneráveis, às quais a Igreja continua a dedicar especial atenção. Mas constitui igualmente a afirmação da validade daquilo que somos como Igreja e da missão em que participamos com dedicação e alegria, mesmo diante de generalizações mediáticas que tomam a árvore pela floresta, como se toda ela estivesse doente.

Por isso, caros irmãos no episcopado, no sacerdócio, no diaconado, na vida consagrada e em tantos serviços laicais nas nossas comunidades, dou graças a Deus por esta Igreja que somos em conjunto. Somos uma Igreja pecadora, mas que não se resigna nem acomoda às suas limitações; Igreja que reconhece erros e luta por renovar-se; Igreja que, na grande maioria do seu clero, reconhece e sofre com as suas limitações, mas procura continuar fiel ao seu Senhor, no serviço ao seu povo e no anúncio alegre do Evangelho; Igreja que procura não  fechar os olhos aos mais carenciados da sociedade, mas criar modos de acolher, de ajudar de integrar; Igreja que procura caminhos, linguagem e atitudes mais renovados no acompanhamento das crianças, adolescentes e jovens, bem como dos mais idosos e fragilizados; Igreja que, sendo sempre imperfeita e em caminho, quer continuar no mundo a dar sinais da presença do Senhor Jesus que a ensina a cuidar e a deixar-se cuidar, também nos momentos difíceis da história onde o Espírito do Senhor ressuscitado nos leva a buscar, com confiança e coragem, novas linguagens e novos caminhos, na Igreja e no mundo.

Como refere o parágrafo final do nosso contributo para o Sínodo dos Bispos em 2023: “O mundo precisa de uma “Igreja em saída” … que olhe para a humanidade e lhe ofereça mais do que uma doutrina ou uma estratégia, uma experiência de salvação, um ‘golpe de dom’ que atenda ao grito da humanidade e da natureza”.

Um caminho sinodal

Concluo com uma imagem oferecida por Jesus, que retenho como referência de discernimento espiritual e vital, neste momento da Igreja em Portugal e no mundo, cheio de desafios, sofrimentos e apelos. O caminho sinodal, que faz parte deste simpósio, e da identidade sacerdotal liga-se com a imagem samaritana da Igreja pelos caminhos do mundo, na parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,29-37).

Não é um caminho regular, previsto, sem acidentes, como o desenham, com a sua atitude, o sacerdote e o levita, cuidadosos e materialmente fiéis aos seus deveres no templo, mas insensíveis ao sofrimento que continua nas margens do caminho da vida que a ele conduz ou dele parte. O samaritano, o estrangeiro e excluído, convida-nos a não programar o processo sinodal como um regular percurso de santuários e ritos de sempre. Ele desafia-nos a mudar percursos, linguagens e atitudes, de modo que tenhamos tempo e disponibilidade para olhar para a beira da estrada, para apear-se, atender e cuidar das feridas dos que caem vítimas de si próprios ou de gente sem escrúpulos, para derramar nelas o óleo da atenção, da escuta, da misericórdia e da dignidade que cura e permite a vida e o futuro.

Essa é a imagem que Jesus, o Bom Samaritano, propõe como caminho, identidade operativa da Igreja e atitude fundamental do nosso serviço eclesial, terminando com um convite que soa como mandamento: “Vai e faz tu também o mesmo!”.

D. José Ornelas
Bispo de Leiria-Fátima

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