Não nos cansemos nunca de fazer o bem

Reflexão da Comissão Nacional Justiça e Paz sobre a mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2022

Estamos a viver o tempo quaresmal que surge, no ritmo da vida crente, como sendo o tempo oportuno para repensarmos a nossa existência. Não se trata de um convite para pararmos a vida, mas, pelo contrário, de uma oportunidade para a podermos repensar, destacando todas aquelas dinâmicas que a valorizam, descartando aquelas que a paralisam, ousando a novidade que se revele necessária para a podermos enriquecer.

Nesta Quaresma, a mensagem que o Papa Francisco dirige a toda a comunidade crente e a todos aqueles que por ela se possam deixar interpelar reveste-se de uma força profética. No momento em que, perplexos, assistimos a acontecimentos que julgávamos já não serem possíveis, por nos parecer que seria incompreensível não ter aprendido as lições da história, no momento em que as vozes da destruição e da guerra parecem gritar mais alto, somos convidados, com toda a veemência, a que não nos cansemos nunca de fazer o bem.

Deixando-se inspirar pelo texto de Gal 6, 9-10a «Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. Portanto, enquanto temos tempo (kairós), pratiquemos o bem para com todos», Francisco propõe-nos uma reflexão dividida em três pontos.

No primeiro reflete sobre a sementeira e a colheita, perguntando-se sobre qual é o tempo favorável para semear. Face à pergunta, a resposta dada pelos cristãos deve ser clara e inequívoca: o tempo favorável é o tempo presente, cada tempo presente. E de outro modo não poderia ser, como podemos compreender a partir da própria dinâmica da encarnação. Nada do que é cristão pode deixar de ter essa marca. Por isso, cada tempo que vivemos tem de ser o tempo favorável para fazer o bem. É bom, a este propósito, relembrarmos aquela página inicial da Constituição Pastoral Gaudium et Spes onde podemos ler:

“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história.”

Porque intimamente ligados ao género humano e à sua história, porque não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco nos seus corações, os cristãos não podem, neste momento tão grave da história, deixar de semear o bem. Neste sentido, esta Quaresma tem de ser tempo favorável para repensarmos o modo como estamos a educar e formar as novas gerações. O que ensinamos nas nossas escolas, o que partilhamos nas nossas catequeses, o que refletimos nas nossas formações tem de ser sementeira para criarmos um mundo diferente. Se quisermos verdadeiramente ousar o futuro diferente que se revela cada vez mais necessário e urgente, temos definitivamente de embarcar na «Arca da Fraternidade», desenvolvendo uma pacto educativo, que potencie o talento humano e o ponha ao serviço do bem de todos; promovendo uma economia que coloque a pessoa no centro, destacando que essa é a maior riqueza; cuidando da Casa Comum, porque ela tem de ser um lar para todos; apoiando a família, porque por ela passa o futuro da Igreja e do mundo; construindo a paz, porque tudo pode ser perdido com a guerra.

Esta Quaresma deve ser tempo favorável para nos interrogarmos sobre as realidades que habitam a nossa mente e o nosso coração. Quais são as nossas reais preocupações? Onde gastamos a maior parte do nosso tempo? O que é que verdadeiramente nos cativa e inspira? A verdade com que respondermos a estas perguntas certamente nos ajudará a compreender melhor as mudanças que temos de fazer para sermos semeadores do bem e construtores da paz.

Podemos não ser nós a colher os frutos desta sementeira, mas o que sabemos é que a colheita será sempre o resultado daquilo que semearmos. Se não semearmos nada, ou semearmos pouco, não colheremos nada, ou colheremos pouco. O bem que queremos e necessitamos para nós e para as gerações futuras, o bem que queremos, porque estamos convictos de que esse é também o querer de Deus, está a pedir que nunca nos cansemos de nos comprometer com esse mesmo bem desejado, encarando isso “não como um peso, mas como uma graça pela qual o Criador nos quer ativamente unidos à sua fecunda magnanimidade”, como podemos ler na mensagem que nos é dirigida.

No segundo ponto, o Papa Francisco sublinha a importância do compromisso dos cristãos e das suas comunidades com o bem, alertando para as dificuldades que certamente terão de ser enfrentadas: “Perante a amarga desilusão por tantos sonhos desfeitos, a inquietação com os desafios a enfrentar, o desconsolo pela pobreza de meios à disposição, a tentação é fechar-se num egoísmo individualista e, à vista dos sofrimentos alheios, refugiar-se na indiferença.”

O último estádio de uma crise, dizem alguns, costuma manifestar-se por uma situação de «saturação indiferente». Esse é certamente um dos maiores perigos que corremos. O cansaço pode começar a querer ganhar terreno, porque os resultados não aparecem, porque a colheita ainda se vislumbra muito longínqua, possibilitando que se comece a instalar a indiferença que nos pode fazer olhar para a realidade considerando que pouco ou nada há a fazer e facilitando, por sua vez, o aparecimento da tentação de nos instalarmos no interior dos nossos grupos e comunidades como zonas de conforto e segurança.

Já na Evangelii Gaudium tínhamos sido alertados para isso:

“O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes.” (n.º 2)

E se este grande risco está bem sinalizado, também está o modo como o podemos superar:

“A proposta é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: «Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De facto, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais». Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador, não faz mais do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: ´A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros`. Isto é, definitivamente, a missão.»” (n.º 10)

A Quaresma é também o tempo favorável para mapearmos aquilo que nas nossas vidas e comunidades é sinal de uma tristeza individualista, dum coração comodista e mesquinho e de uma consciência isolada, de modo a podermos verdadeiramente promover a dinâmica do dom, que se preocupa em defender e promover a vida de todos e em todas as ocasiões.

A oração, o jejum e a caridade surgem, neste tempo da Quaresma, ainda com mais evidência, como lugares privilegiados para com Deus escutarmos o clamor dos povos. “Precisamos de rezar, porque necessitamos de Deus. A ilusão de nos bastar a nós mesmos é perigosa”, podemos ler na mensagem. A oração aproxima-nos do Senhor e ajuda-nos a olhar e a entender a história com os seus olhos e o seu entendimento. E como estamos necessitados disso! O jejum pode ajudar a focar-nos no essencial, possibilitando o reconhecimento daquelas coisas que nos desviam da fonte da vida. A Quaresma é também tempo oportuno para a reconciliação com o projeto de Deus para as nossas vidas e para a história. A Quaresma é, igualmente, “tempo propício para procurar, e não evitar, quem passa necessidade; para chamar, e não ignorar, quem deseja atenção e uma boa palavra; para visitar, e não abandonar, quem sofre a solidão.” Neste sentido, o compromisso com o serviço da caridade é testemunho e critério para aferir a fidelidade a Deus e ao seu projeto. A esse propósito lembramos o que se pode ler no n.º 178 da Evangelii Gaudium:

“A partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente exprimir e desenvolver em toda a ação evangelizadora. A aceitação do primeiro anúncio, que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas ações uma primeira e fundamental reação: desejar, procurar e ter a peito o bem dos outros.”

Finalmente, no terceiro ponto, o Papa lembra-nos que “a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. O bem, o amor a justiça e a solidariedade, como se diz na Fratelli Tutti n.º 11, não se alcançam de uma vez para sempre, tendo de ser conquistados cada dia.

O mesmo se pode e deve dizer acerca da paz. Ela é mesmo um compromisso inadiável para todos os que se dizem cristãos. Ela é critério da autenticidade da experiência cristã: Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (Mt 5, 9).

A paz é verdadeiramente um trabalho de «artesanato» ao qual todos somos convocados como se pode ler no n.º 231 da Fratelli Tutti:

“Existe uma «arquitetura» da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade, cada uma dentro de sua competência, mas há também um «artesanato» da paz que nos envolve a todos.”

Este tempo de Quaresma é também o tempo favorável para vermos e identificarmos tudo o que nas nossas vidas e nas nossas sociedades se configura como obstáculo à paz, de modo a que possa ser removido.

Este tempo de Quaresma que estamos a viver é verdadeiramente o tempo “favorável de renovação pessoal e comunitária que nos conduz à Páscoa de Jesus Cristo morto e ressuscitado.”

Ainda a viver as consequências de uma pandemia global que não está terminada, somos agora confrontados com os horrores da guerra, que se mostram evidentes no território europeu, mas que têm estado presentes em tantos outros territórios, apesar de não serem tão visíveis, ou de nós não os vermos com tanta evidência. Uma imensa vaga de refugiados desta guerra vem ainda aumentar esse número, já gigante, de tantos irmãos nossos deslocados. Acolher os que fogem da guerra, vivendo com eles a experiência da hospitalidade, é certamente hoje uma das maneiras de concretizar uma das obras de misericórdia (cf. Mt 35, 34-46). A preparação da celebração da Páscoa pode nesta Quaresma passar, de um modo muito concreto, pelo exercício deste acolhimento, porque, não tenhamos medo de o afirmar, a verdade sobre a nossa fé acontece também quando cuidamos dos sofrimentos dos outros, ou passamos ao largo (cf. FT 70).

Perante estes enormes desafios que nos interpelam enquanto humanidade e enquanto cristãos somos chamados, de um modo especial nesta Quaresma, a renovarmos as nossas vidas à luz do Evangelho e a comprometermo-nos, todos os dias e sempre, com a construção da paz e a realização do bem.

Lisboa, 8 de março de 2022

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