Fazer Caminho: Das Pedras ao Fogo da Páscoa

Reflexão Quaresmal da Comissão Nacional Justiça e Paz

Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não ervas. (…) Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos, nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.

(António Ramos Rosa, Sobre o Rosto da Terra)

 

António Ramos Rosa apresenta-nos neste fragmento poético aquilo que poderá constituir a caminhada quaresmal de cada um ou de cada uma ao encontro da Ressurreição. Acompanhamos a Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2018 cujo título é interpelador: “Porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos”[1]. Nesta passagem do Evangelho Jesus anuncia a destruição do templo não ficando “pedra sobre pedra”. Pensamos na “Casa Comum”[2] de que Francisco fala na Laudato Sí.

Vivemos tempos difíceis, “tempos de pedra”, “sabemos que os pisamos”. Como podemos transcender as situações de violência e injustiça que nos assolam, como deixarmos de estar “sentados num bloco de gelo?” – uma metáfora poderosa! apresentada pelo Papa, citando Dante. A Reflexão Quaresmal de 2018 da Comissão Nacional de Justiça e Paz (CNJP), afirma, contextualiza e expande esta exortação do Papa: “Porque se multiplicará a iniquidade, vai resfriar o amor de muitos!”

 

 

  • Sem dizer o fogo – vou para ele

O Papa Francisco começa a sua mensagem reafirmando aquilo que vivemos ano após ano: “Mais uma vez nos vamos encontrar com a Páscoa do Senhor”. O ciclo litúrgico convida-nos: “Convertei-vos!” O título da mensagem de Francisco é um anúncio com carácter evangélico, a afirmação de uma realidade. Mas é também um aviso, uma séria interpelação: a multiplicação da iniquidade conduz ao abismo, leva-nos a um beco sem saída onde não haverá salvação. A dicotomia iniquidade/amor é um ponto de partida para uma referência à relação entre justiça (ou equidade) e caridade (ou amor), que devem estar sempre estreitamente ligadas: a caridade pressupõe a justiça, a justiça deve ser completada com a caridade.

O Papa afirma de um modo contundente:

O que apaga o amor é, antes de mais nada, a ganância do dinheiro, «raiz de todos os males» (1 Tm 6,10); depois dela, vem a recusa de Deus e, consequentemente, de encontrar consolação n’Ele, preferindo a nossa desolação ao conforto da sua Palavra e dos Sacramentos. Tudo isto se transforma em violência que se abate sobre quantos são considerados uma ameaça para as nossas «certezas»: o bebé nascituro, o idoso doente, o hóspede de passagem, o estrangeiro, mas também o próximo que não corresponde às nossas expetativas.

Com Cristo vivemos as tentações dos quarenta dias no deserto: o dinheiro, cobiça e riqueza – o “bezerro de ouro” -; o poder para nos servirmos a nós mesmos num “sucesso” a todo o custo, espezinhando os outros; a “imagem” superficial e as relações passageiras, o falso pelo verdadeiroa negação de Deus. Tal como afirma o Papa, somos vítimas de “encantadores de serpentes”, dos falsos profetas que se refugiam também nos media, no “discurso” maioritário, nas promessas vãs de felicidade eterna: o “Eu” no centro e tudo o resto girando à minha volta. Salomão “desviou o seu coração para outros deuses”[3] e por isso Deus o puniu. Francisco interpela-nos na sua Mensagem: se não discernirmos e combatermos essas tentações, viveremos de coração empedernido, “ficaremos sentados num trono de gelo”, correndo o risco de apagar o Amor.

 

 

  • Sem enunciar as pedras, sei que as piso

Enunciando algumas das “pedras” que se constituíram em ameaças à nossa sobrevivência, o Papa faz uma dramática denúncia:

A própria criação é testemunha silenciosa deste resfriamento do amor: a terra está envenenada por resíduos lançados por negligência e por interesses; os mares, também eles poluídos, devem infelizmente guardar os despojos de tantos náufragos das migrações forçadas; os céus – que, nos desígnios de Deus, cantam a sua glória – são rasgados por máquinas que fazem chover instrumentos de morte.

O mundo vive “uma guerra em lume brando” que tem sobretudo expressão ao nível de conflitos locais. Deparamo-nos com extremismos nacionalistas renascendo na Europa. Novos fundamentalismos se instalam entre nós. O terrorismo não tem fronteiras: experimentamos no nosso quotidiano a insegurança e o medo, a desesperança. Vivemos uma globalização económico-financeira que, em vez de nos trazer maior solidariedade, nos atrofia e abafa com tentáculos invisíveis. O ultra-liberalismo do “salve-se quem puder” é no mundo uma realidade: instalou-se na educação, na saúde, na justiça, no apoio e segurança social, no trabalho e no emprego, no uso da terra.

Afirma ainda o Papa:

Quantos acabam enredados numa vida completamente virtual…:

O excesso de relações online, das horas em frente a ecrãs que nos consomem a vista e a vida roubando um imenso espaço a tudo o resto. Esta questão é transversal a todas as idades mas tem hoje contornos dramáticos nos adolescentes que ainda não têm a mínima capacidade de autocontrole no uso das redes sociais e afins e que nos pode colocar em estado de ”rotura comunicacional”

O recente relatório da Oxfam sobre a desigualdade no mundo[4], divulgado na véspera do Fórum Económico Mundial em Davos, informa que: “mais de 80% da riqueza criada no mundo em 2017 foi parar às mãos dos mais ricos que representam 1% da população mundial”. O fosso entre os poucos ricos e a enorme massa de pobres torna-se cada vez mais evidente. Não podemos esquecer que as vítimas do aquecimento global serão sempre os mais pobres… A ameaça nuclear paira sobre nós apesar dos tratados assinados. Ao referir-se à última reunião da Organização Mundial do Comércio, realizada em Buenos Aires em Novembro de 2017, o jornalista inglês Nick Dearden afirma, criticando a atitude rígida e egoísta dos países ricos: “o mundo transformou-se no parque de diversões das empresas”.

Impressiona a clareza do Papa em nomear as duas causas tão concretas do “resfriar do amor”, a nível pessoal e “também nas nossas comunidades”: a ganância e a recusa de Deus. Queremos inscrever esta interpelação nos nossos corações insatisfeitos e inquietos? Manuela Silva[5] pergunta: “O futuro pode ou não ser construído e melhorado com a nossa ação? Ou é algo que vem do futuro ao nosso encontro e nos arrasa?” .

 

 

  • duramente, são pedras e não ervas

Vamos deixar-nos arrasar por essa “avalanche de pedras” que desce do cimo das montanhas? E nós – eu, tu…? -, em que pedras tropeçamos? Reconhecemos os falsos profetas que “se aproveitam das emoções humanas para escravizar as pessoas”?

Como foi fazendo ao longo do ano passado, a CNJP insiste: Que dizemos da televisão e dos media que temos? Como intervimos face à panóplia de programas televisivos e afins que puxam “por tudo o que é emoção e nos prendem por aí”? Que fazemos contra dispositivos de entretenimento viciantes?

O índice de “desenvolvimento inclusivo” continua a ser baixo em Portugal. Apesar dos bons resultados do Serviço Nacional de Saúde, nem todos os portugueses têm pleno e tempestivo acesso à saúde. Porque se trata de um bem tão preciso, esse acesso não pode depender das capacidades económicas de cada um.

A triste marginalização dos idosos parece não ter remédio e também o “esquecimento” das populações do interior. O exemplo recente dos CTT é paradigmático porque a tomada de decisão teve como base um maior lucro e não a reorganização de um serviço de atendimento aos cidadãos, nomeadamente os mais isolados. Ora, estamos a falar de direitos humanos básicos. Mas há que reconhecer o contraponto de algumas iniciativas muito belas, como a aplicação informática “SOS idosos” feita por um grupo de jovens na sua escola.

Apesar da generosidade e solidariedade dos portugueses, os fogos deste verão e outono trazem à superfície problemas mais profundos quanto à distribuição geográfica da população e à concentração das pessoas em megacidades. Nestas megacidades o crime e a violência instalam-se de par com um outro tipo de pobreza que retira qualquer dignidade ao quotidiano das pessoas e reduz tudo a uma luta pela sobrevivência. Há uma dimensão ética na proteção do ambiente: uma exigência de justiça e amor para com as gerações futuras. Como será com os nossos filhos? Assistimos impotentes à poluição criminosa dos nossos rios ao mesmo tempo que se falseiam informações relevantes para prevenir a repetição de situações calamitosas: o caso do Rio Tejo ainda permanece na nossa retina pelas imagens dramáticas projetadas nos ecrãs televisivos.

A corrupção destrói o nosso sistema democrático, é “um vírus social” como lembrou o Papa no Peru. A troca de favores e a corrupção até em instituições que têm por missão o combate ao crime e em instituições de solidariedade social parece estar a aumentar (ou será mais conhecida, o que é, em si, de louvar). Como é possível termos chegado a esta tão acentuada ausência de sentido ético no uso dos financiamentos públicos?

Anunciam-nos que a taxa de desemprego baixou (e congratulamo-nos com isso) mas há que continuar a denunciar os salários baixos e a situação contratual precária. Com estas condições de trabalho, como podemos desejar que as famílias tenham mais filhos? Encerram-se fábricas sem qualquer proteção dos trabalhadores. Como um sinal de esperança assistimos nos meses recentes a situações exemplares de luta pelo posto de trabalho ou, na sua inevitável perda, por condições justas de layoff. A este nível temos de reconhecer o trabalho significativo da comunicação social trazendo estas problemáticas para a praça pública.

E que dizemos da corrupção no desporto, concretamente no desporto-rei? Grande parte dos noticiários são tomados pelas notícias de futebol, alienando e adormecendo a nossa população e esquecendo outras modalidades que demonstram os reais valores de uma prática desportiva honesta, saudável e digna.

Constatamos finalmente a não-diminuição da violência doméstica e a incapacidade das forças de segurança, e mesmo da justiça, de atenderem a este flagelo que tem ceifado muitas vidas, nomeadamente de mulheres. Tem vindo a lume, mais recentemente, uma nova praga: a da violência no namoro. Como redesenhamos fatores culturais ancestrais que atropelam os mais basilares direitos humanos?

Mantém-se o índice de desemprego juvenil e a emigração forçada de milhares de jovens que não encontram condições nem a possibilidade de construir um projeto de vida no seu próprio país. Em contraponto, como se tem desenvolvido o acolhimento de migrantes e refugiados? Tornou-se uma não-notícia? No entanto, conhecemos sobejamente entre nós a exploração e o tráfico de seres humanos (sobretudo mulheres e crianças), a sujeição a formas de trabalho degradantes, reduzindo as pessoas a nómadas, proscritos, “não cidadãos”.

Questionamos o consumo desenfreado que nos traz uma aparente satisfação, mas apenas nos excita, nos enche de uma energia balofa, superficial e falsa. Presenciamos o “culto do corpo” e da beleza física normalizada e, simultaneamente, constatamos a fome espiritual que nos leva a uma insatisfação permanente e a tantos distúrbios alimentares, incluindo em crianças. A pobreza cultural da uma significativa parte da população portuguesa é ainda confrangedora.

“Sentados em tronos de gelo” – afirma o Papa – “instalamo-nos no remédio por vezes amargo da verdade…”. Será que perdemos a capacidade de nos indignar? É esta a noção de uma vida com qualidade para todos? Não temos todos o direito de bem-viver? Que fazer face a esta “difusão da iniquidade no mundo”?

 

 

  • Tudo o que sei, já lá está…

Regressemos à palavra do Evangelho, a Palavra das palavras, que nos situa no tempo, nessa caminhada do ser humano para a plenitude e para o desejo de Deus.

Cristo não excluiu ninguém e acolheu todos, mesmo os leprosos que a tradição judaica considerava impuros. Tocou-os, abençoou-os, deu-lhes a cura para os seus males. Fez o mesmo a tantos, doentes do corpo e do espírito. Estendeu as mãos aos prisioneiros e às mulheres, consideradas subalternas e “impuras”. Cristo devolveu a dignidade aos que são excluídos em função das suas ideias, da sua condição social, opções de vida ou cultura… Cristo deu a mão a todos. Cristo precisa das nossas mãos para continuar a incluir todos. Sabemos. Mas não sabemos com o corpo, o espírito, a carne. Sabemos e não sabemos.

Meditemos então na Palavra:

Estando Jesus sentado no Monte das Oliveiras, os discípulos aproximaram-se e perguntaram-lhe em particular: «Diz-nos quando acontecerá tudo isto e qual o sinal da tua vinda e do fim do mundo.» Jesus respondeu-lhes: «Tomai cuidado para que ninguém vos desencaminhe. 5Porque virão muitos em meu nome, dizendo: ‘Sou eu o Messias’. E hão de enganar muita gente. Ouvireis falar de guerras e de rumores de guerras, mas não vos assusteis. Isso tem de acontecer, mas ainda não será o fim. Há de erguer-se povo contra povo e reino contra reino, e haverá fomes, pestes e terramotos em vários sítios. Tudo isto será apenas o princípio das dores.[6]

(…) Então, se vierem dizer-vos: ‘Aqui está o Messias’, ou ‘Ali está Ele’, não acrediteis; porque hão de surgir falsos messias e falsos profetas, que farão grandes milagres e prodígios, a ponto de desencaminharem, se possível, até os eleitos. Olhai que já vos preveni. Por isso, se vos disserem: ‘Ele está no deserto’, não saiais; ‘Ei-lo no interior da casa’, não acrediteis. Porque, assim como o relâmpago sai do Oriente e brilha até ao Ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem (…).[7]

Séculos após séculos Cristo continua a relembrar o caminho que temos de fazer em comum. E alerta e interpela os discípulos a que não se iludam com falsas palavras. Mas os nossos ouvidos continuam a não escutar, os olhos a não ver, o pensamento a esvaziar-se. No entanto Ele traz-nos a promessa de um recomeço:

Aprendei da comparação tirada da figueira: quando os seus ramos se tornam tenros e as folhas começam a despontar, sabeis que o verão está próximo. Assim também, quando virdes tudo isto, ficai sabendo que Ele está próximo, à porta. Em verdade vos digo: Esta geração não passará sem que tudo isto aconteça. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar[8]

Cristo quer ressuscitar por nós e em nós. Meditemos a Palavra e tenhamos esperança neste anúncio de um recomeço.

 

  • … mas [ainda] não estão os meus passos, nem os meus braços.

Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do Homem há de vir [9].

O Evangelho convida-nos a ser/estar vigilantes não deixando de contemplar o belo, o bom, o justo. É na alegria e na esperança que queremos ser interpelados nesta Quaresma. Mas Cristo precisa das nossas mãos para continuar o caminho da Ressurreição. Afirma o Papa: “Se porventura detetamos, no nosso íntimo e ao nosso redor, os sinais acabados de descrever, saibamos que, a par do remédio, por vezes amargo, da verdade, a Igreja, nossa mãe e mestra, nos oferece, neste tempo de Quaresma, o remédio doce da oração, da esmola e do jejum”. Francisco convida-nos a potenciar “as pedras do caminho” com os nossos passos e com os nossos braços.

O apelo à oração, à esmola e ao jejum é universal. Ou seja, a proposta não é apenas dirigida aos católicos, mas sim a todos os homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus.

Assim, comecemos por rezar a nossa indigência, olhemos para dentro de nós e descubramos os padrões de vida que nos impedem de “estar” em Deus. Façamos silêncio, predisponhamos o nosso corpo para que o silêncio possa fluir. Então, sim, “entremos no nosso quarto” e rezemos. Comecemos por rezar por nós (por nós próprios, sim!) para depois, ou simultaneamente, trazermos ao patamar de Deus tudo aquilo que nos aflige e que foi anteriormente enunciado. E se não o conseguirmos fazer, balbuciemos palavras repetidas em jaculatórias que conhecemos bem: Senhor Jesus tende compaixão de mim! Meu Senhor e meu Deus! Pai Nosso…! ou a belíssima jaculatória ortodoxa: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim, pecador(a). Alimentemo-nos também com o pão da Eucaristia, sinal da Cruz e, simultaneamente, sinal de Ressurreição.

A prática da esmola liberta-nos da ganância e ajuda-nos a descobrir que o outro é nosso irmão: aquilo que possuo, nunca é só meu. Afirma Francisco: “Quantos cristãos e quantas comunidades e instituições aburguesadas não passam sem uma abundante fortuna pessoal? Nem precisam de confiar na Providência Divina: os seus celeiros-silos estão bem cheios”:

Desejamos viver ao jeito dos primeiros cristãos, em que cada um recebia estritamente o que lhe era necessário. Desejamos que o espírito de Quaresma se prolongue ao longo do ano, dos anos, da nossa vida inteira. Mas como definimos o que nos é necessário em contraponto à necessidade dos outros? Vale a pena fazermos uma análise crítica e séria, um exame de consciência. Os mais recentes relatórios e estudos científicos afirmam que é possível a qualidade de vida para todos se alguns se predispuserem a viver com menos. Francisco critica a ganância e desafia-nos a ser generosos com os bens que possuímos.

Continua Francisco:

Por fim, o jejum tira força à nossa violência, desarma-nos, constituindo uma importante ocasião de crescimento. Por um lado, permite-nos experimentar o que sentem quantos não possuem sequer o mínimo necessário, provando dia a dia as mordeduras da fome. Por outro, expressa a condição do nosso espírito, faminto de bondade e sedento da vida de Deus. O jejum desperta-nos, torna-nos mais atentos a Deus e ao próximo, reanima a vontade de obedecer a Deus, o único que sacia a nossa fome.

O que pode ser o jejum para cada um de nós? Queremos escolher um estilo de vida simples e frugal em que o pão pode ser partilhado em alternativa a uma “programação das nossas mentes” para uma “satisfação imediata”. “Quando jejuardes…”[10] . Se queremos formar os nossos filhos para uma sã disciplina na alimentação, comecemos por nós. Mas não deixemos de usufruir do que comemos e bebemos porque tudo o que é bom é um dom de Deus. Talvez possamos também fazer “jejum” de outras coisas: a maledicência, a pequena e a grande inveja, a autocomiseração, o pessimismo. Podemos talvez esquecer a obsessão por férias e “escapadelas”, já que o descanso é essencial, mas não pode tornar-se um bem alienante e “consumidor” das nossas almas. Façamos ao exemplo de Deus que, no último dia da Criação, quis descansar para contemplar a Sua obra. Contemplemos, usufruamos, alegremo-nos, demos graças pelo que temos e sejamos generosos para os que não têm.

O jejum que me agrada não será antes este: quebrar as cadeias injustas, desatar os laços da servidão, por em liberdade os oprimidos, destruir todos os jugos? Não será repartir… dar pousada…levar roupas… não voltar as costas ao seu semelhante? (Is 58, 8-10)

Conclui Francisco:

Gostaria que a minha voz ultrapassasse as fronteiras da Igreja Católica, alcançando a todos vós, homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus. Se vos aflige, como a nós, a difusão da iniquidade no mundo, se vos preocupa o gelo que paralisa os corações e a ação, se vedes esmorecer o sentido da humanidade comum, uni-vos a nós para invocar juntos a Deus, jejuar juntos e, juntamente connosco, dar o que puderdes para ajudar os irmãos!

Interpelação forte do Papa Francisco a todos nós, sem distinção de credos ou raças e culturas, localização geográfica ou fronteiras, escolhas e modos de vida… quer afirmemos Deus quer não O afirmemos. Francisco convida-nos também à tolerância em contraponto à inflexibilidade, à transcendência em contraponto ao imediato, não deixando que a falta de misericórdia congele os nossos corações. Cristo convida-nos a ir para além da Lei e a instalarmos o Reino do Amor. Cultivemos então a virtude da tolerância.

 

  • Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu

Maria de Lourdes Pintasilgo afirma: “Assim se conjuga esta interioridade e presença ao mundo (…). É uma constante interpenetração da fome e da sede por um mundo diferente e por si mesmo diferente”[11] . Agir com e em consciência. Criticar e denunciar o que não está bem. Manifestar-me não tendo medo do exercício da cidadania. Mas, simultaneamente, refletir no meu coração e deixar que se instale não o gelo, mas a fome e sede de Deus.

O caminho do “povo de Deus” está cheio de pontos de rutura, de interceções e violência, de infidelidades e recuos na Fé em Deus. Assim o Antigo Testamento no-lo conta. Assim a palavra do Evangelho o denuncia. Experimentamos esta dicotomia vezes sem fim, porque somos homens e mulheres pecadores que precisam, dia após dia, de limpar a alma aquecendo o seu coração de pedra. Por isso, precisamos da Quaresma: para prepararmos o nosso coração para receber o Cristo Ressuscitado que “faz novas todas as coisas”. Para isso precisamos de praticar a oração, o jejum, a esmola.

Temos um dever para com o futuro. Que a fé no futuro nos mantenha os olhos abertos. O tempo da Quaresma diz-nos que não há conversão exterior sem uma conversão interior. Somos “indigentes”, somos pecadores: façamos o caminho para/por dentro de nós mesmos. Sophia de Mello Breyner afirma na linguagem inigualável da poesia: “o meu interior é uma atenção virada para fora”; “de tudo quanto vejo me acrescento”… Queremos viver um Amor oblativo que não se circunscreva ao nosso círculo imediato mas se vá alargando e acrescentando em círculos cada vez mais amplos até tornarmos a nossa vida um imenso oceano habitado por Deus!

 

 

… E nesse intervalo, caminho e descubro o meu caminho.

Rezemos pelo Papa tal como ele nos pede no final da sua Mensagem. Que Deus livre de todo o mal o seu coração generoso, profético e aberto. Que o Senhor o proteja. Com ele comprometemo-nos a tomar em mãos o “ardor evangélico”, tal como S. Paulo fez: “Ai de vós se não evangelizardes!” Mas tenhamos consciência de que não podemos “evangelizar outros” se não nos despirmos das nossas distorções interiores, dos nossos fundamentalismos, da dicotomia “nós/eles”. Analisemos de onde isso nos vem.

Assim, porque não começar por nos “evangelizarmos a nós próprios/as”, a exemplo dos quarenta dias que Jesus viveu no deserto? Estamos preparados para ser tentados e resistir como Jesus fez, a rezar suor, lágrimas e sangue no jardim das oliveiras? Podemos viver em nós a Paixão de Jesus Cristo, caminhando a Quaresma? Façamos um exame de consciência… e abramo-nos ao Sacramento da Reconciliação.

Afirma Santo Agostinho[12]:

Vamos ver quem bebe da torrente no caminho. E em primeiro lugar o que significa esta torrente? É a imagem da vida humana que corre. Assim como a torrente se forma das águas e da chuva abundante, e inunda, faz barulho, corre e correndo desliza até completar o seu curso, assim acontece com esta torrente de tudo o que é mortal (…). Nascimento e morte, eis a torrente. (…) E porque ele bebeu da água da torrente “ergueu a sua fronte”.

Irmãs e irmãos cristãos e não cristãos, vamos erguer as nossas frontes em alegria e júbilo: tomemos o Amor como caminho para as nossas vidas, porque o Amor é também o caminho que nos oferece o Evangelho de Jesus. Rezemos ao Deus de Jacob que, nas palavras do salmo 113, “transformou o rochedo em lago e a pedra em fonte de água”. Assumamos a nossa “condição anímica de caminhante” (Edith Stein). Aproximemos o ouvido do coração, pois dele “brotam as fontes da vida”[13] e aprontemo-nos a acolher o “fogo” de Deus, o fogo da Páscoa de Cristo Ressuscitado!

 

Lisboa, 21 de fevereiro de 2018

Comissão Nacional Justiça e Paz

 

 

[1] Mt 24,12.

[2] Veja-se informação sobre uma nova rede: http://casacomum.pt.

[3] 1Rs 11, 4

[4] www.oxfam.org/en/research/reward-work-not-wealth

[5] Manuela Silva. É no presente que se gerundia o futuro. Conferência Desamordaçar o Futuro, na Fundação Cupertino de Miranda, Porto, novembro de 2017.

[6] Mc 13,3-8; Lc 21,7-11.

[7] Mc 13,21-23; Lc 17,23-24.

[8] Mc 13,28-32; Lc 21,29-33.

[9] Mt 25,13.

[10] Mt 6,17: “Quando jejuardes, não vos mostreis com aspecto sombrio como os hipócritas; pois desfiguram o rosto com a intenção de mostrar às pessoas que estão jejuando”.

[11] Maria de Lourdes Pintasilgo. Interioridade e Presença ao Mundo, 1990.

[12] A propósito do Salmo 109.

[13] Provérbios, 4,23.

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