A Escola em Portugal – Educação Integral da Pessoa

CEP sugere educação orientada por valores e pedindo ao Estado que promova e financie todas as escolas Conferência Episcopal Portuguesa A ESCOLA EM PORTUGAL EDUCAÇÃO INTEGRAL DA PESSOA HUMANA Carta Pastoral Introdução 1. Tem sido propósito dos Bispos Portugueses, por fidelidade à sua missão, dar o seu contributo à reflexão de problemas da nossa sociedade com particular incidência sobre a vida das pessoas e o bem da comunidade. Fizemo-lo já em relação à Democracia (2000), Migrações (2001) Voluntariado e Humanização Social (2001), Trabalho (2002), Educação (2002), Comunicação Social (2002) e Família (2004). Desde há muitos meses vimos reflectindo sobre a Escola, uma reflexão nunca concluída, mas agora passada a documento que intitulamos: A Escola em Portugal – Educação integral da Pessoa Humana. Pela sua importância e pela crise que vem enfrentando, a escola é uma instituição que não nos pode deixar indiferentes, bem como a todos os cidadãos que tenham preocupações relacionadas com o presente e o futuro do país. No documento sobre a Educação, Direito e Dever – missão nobre ao serviço de todos (ns 18-20), fizemos já, como não podia deixar de ser, algumas referências à Escola “pelo seu papel decisivo na transformação dos indivíduos e das suas atitudes”. O momento actual recomenda-nos que esta reflexão continue e aborde aspectos que nos parecem mais apelativos, como a escola, um serviço concreto à pessoa, a antropologia apresentada nos conteúdos dos programas escolares, a verdade da pessoa e das coisas como fundamento da educação escolar, a liberdade de ensino e de aprendizagem como meios de valorização e qualificação da escola e, por fim, o contributo das escolas da Igreja no contexto escolar actual do nosso país. 2. Tratando-se de uma reflexão sobre tema tão importante, num momento cultural em que se reequacionam os próprios conceitos de ciência e de educação, sabendo que a educação é uma realidade muito mais ampla que a experiência escolar, o presente contributo não pretende encerrar o tema, mas suscitar interesse para que o mesmo continue a ser reflectido e enriquecido. Esperamos que assim aconteça, com o empenhamento dos serviços do Estado, os responsáveis das escolas estatais e das privadas, os pais e outros encarregados de educação, os professores, os animadores responsáveis de movimentos de crianças, adolescentes e jovens, as associações de pais e de professores, os alunos e os cidadãos em geral que se interessam pelos problemas da educação e pelas instituições chamadas a realizar esta tarefa. Na parte que mais directamente nos toca, faremos com que as escolas católicas de todos os graus de ensino, os educadores cristãos, os responsáveis das diversas comunidades eclesiais, os movimentos familiares, se empenhem nesta reflexão, alargando-a a quantos a possam valorizar. A missão da escola 3. A educação escolar terá de assentar, consequentemente, num projecto cultural de natureza axiológica, antropologicamente fundamentado, capaz de definir as opções, as propostas e os contornos das políticas educativas que, coerentemente, o levem à prática. “A escola não pode ser apenas um conjunto de actividades; é uma visão da vida, persistente e longamente perseguida e afirmada” . Uma antropologia assumida com coerência nas suas exigências e nas suas consequências implica a defesa e a valorização da verdade, como fundamento da cultura. Verdade e cultura entendidas não apenas na sua manifestação e expressão discursivas, mas comprometidas na adequação e justeza do agir e na rectidão e justiça das relações. A justiça, a harmonia e a paz, em qualquer sociedade, só poderão edificar-se sobre a verdade, na integralidade da sua natureza ontológica. E só a verdade, assim entendida, pode conduzir à liberdade. “A verdade vos fará livres” (Jo 8,32). Uma autêntica educação escolar exige, assim, uma radicação na verdade do homem, isto é, no respeito integral pela sua origem e pelo seu destino transcendente e pela defesa da sua dignidade inalienável e inviolável ao longo do percurso do seu desenvolvimento desde a sua concepção. A discussão sobre os métodos pedagógicos não deve obnubilar os conteúdos científicos, antropológicos, históricos e filosóficos. 4. O valor da vida é o valor primordial e fundamental de todos os outros valores humanos. Consequentemente, a tarefa essencial e a finalidade irrenunciável da escola é a promoção da vida, condição primeira do desenvolvimento da pessoa e do progresso social, que depende deste mesmo desenvolvimento. Os graves problemas do mundo contemporâneo põem-nos perante a necessidade e urgência de recolocar o valor da vida e da dignidade humana no centro da realidade social, política, económica, cultural e educativa. Ultrapassar a crise contemporânea da escola, e da educação em geral, exige, previamente, redescobrir e abraçar decididamente tal finalidade. “Na raiz da crise da educação há, de facto, uma crise de confiança na vida” . 5. A educação é o percurso da personalização, e não apenas socialização e formação para a cidadania. A educação autêntica é a educação integral da pessoa. Isto exige promoção dos valores espirituais, estruturação hierárquica de saberes e de valores, integração do saber científico-tecnológico num saber cultural mais vasto, mais abrangente e mais englobante. Exige igualmente partilha dos bens culturais e democratização no acesso aos conhecimentos, aos saberes científicos e competências tecnológicas, que são património comum da humanidade. Exige ainda promoção do homem-pessoa em recusa do homem-objecto de mercado, rejeição de todas as formas de alienação do ser humano, defesa do primado da solidariedade e da fraternidade sobre o interesse egoísta e a competição desenfreada. Uma das formas desta educação integral dá-se, também, através da educação artística, da dinamização da sensibilidade estética e da promoção das várias expressões no contexto da comunicação humana, cultivando os vários talentos, respeitando a sua diversidade na contribuição para o bem comum. O mesmo se promove através da educação física e da actividade desportiva quando estas obedecem a valores pessoais e sociais autênticos e recusam as lógicas apenas indicadas e menos dignas do ser humano. 6. Este princípio e esta finalidade exigem à escola a luta contra a realidade da marginalização, que caracteriza as nossas sociedades e o mundo no seu conjunto, e a rejeição da crescente mentalidade individualista, ancorando-se no valor da vida e numa ética do bem comum e da solidariedade entre seres humanos e instituições. Tem todo o cabimento a pergunta de Bento XVI: “Concebendo o homem de maneira individualista, segundo a tendência actual, como é que se poderá justificar o esforço a favor da construção de uma comunidade justa e solidária?” A atenção aos mais desprotegidos e a acção educativa, com pessoas preparadas, recursos necessários e ambientes propícios, a favor dos que, por qualquer motivo, perderam capacidades físicas ou mentais ou delas se encontram privadas desde o nascimento, manifesta, de forma sublime, a construção de uma nova «civilização do amor». 7. A escola é um projecto educativo em marcha que, necessariamente, brota de uma convicção que, por sua vez, radica num determinado modelo de homem e de sociedade. A escola é uma concepção de vida em acção, em realização continuada e renovada pela incarnação de ideias, de saberes, de valores, de critérios, de atitudes, de comportamentos. Não há, portanto, educação e ensino alheios a preocupações de ordem filosófica, ideológica, política e religiosa. A racionalização instrumental, económica e técnico-funcionalista não deve constituir o principal referente do desenvolvimento e melhoria das escolas. Estas devem, antes, guiar-se pela promoção constante da dignidade humana, pela formação de uma interioridade criativa e solidária no coração de cada estudante, em constante confronto com o mistério da vida humana. Bento XVI, na sua carta aos cidadãos de Roma sobre a educação (2008), lembra que “a relação educativa é, antes de mais, o encontro entre duas liberdades e a educação conseguida é uma formação para o uso da liberdade”; e prossegue: “só uma esperança credível pode ser a alma da educação, como de toda a vida” . 8. Cada vez mais a escola tem de se considerar uma comunidade educativa alargada, que integra alunos, a entidade responsável pela escola pública, estatal ou privada, os educadores, professores e pessoal não docente, os pais e outros encarregados de educação, a comunidade circundante. A cooperação de todos os membros da comunidade educativa e a sua coesão em função dos objectivos pretendidos são inseparáveis do projecto educativo concreto de cada escola. A comunicação dos valores constitutivos do tecido social, a transmissão da memória cultural e a redescoberta da identidade através do contacto com as próprias raízes são acções muitas vezes facultadas pelo apreciável contributo do contacto inter-geracional, com a participação de alunos, pais e avós. Importância social da escola 9. A escola portuguesa constituiu, nas últimas décadas, da educação pré- escolar ao ensino superior e pós-graduado, o melhor quadro institucional de promoção da democratização da sociedade portuguesa. Hoje, ela acolhe todos os portugueses, sem qualquer distinção. Essa é uma conquista social da maior importância, no quadro da sociedade do conhecimento em que vivemos, que resulta de um esforço colectivo, persistente e continuado. Mas é precisamente no momento em que a escola portuguesa acolhe todos os cidadãos que revela as maiores fragilidades em criar as condições para que todos e cada um deles possam desenvolver-se e atingir adequados níveis de sucesso escolar. A heterogeneidade social e as desigualdades que persistem na sociedade portuguesa estão hoje presentes na escola e esta manifesta evidentes dificuldades em atender a estas diferenças, criando oportunidades apropriadas de desenvolvimento integral para cada um e para todos. E não só manifesta estas dificuldades como se encontra demasiado isolada no cumprimento deste objectivo social e cultural do maior alcance. A escola portuguesa precisa de melhorar a capacidade que tem demonstrado para cumprir a sua missão e, para tal, tem de contar com o apoio inequívoco de toda a comunidade nacional. 10. Este momento histórico, em que acolhe todos e a todos pode proporcionar um itinerário educativo de sucesso, é o momento crucial para credibilizar social e institucionalmente a escola. E todos sabemos com que dificuldades a escola cumpre a sua missão, dificuldades estas bem visíveis nas taxas de insucesso e de abandono precoce, que persistem em serem as mais elevadas em toda a União Europeia. Nenhum cidadão e nenhuma instituição social deveriam ficar indiferentes face a estas dificuldades, em parte derivadas de uma actuação política inconsequente e inconstante, ao longo de décadas, em parte consequência da falta de liberdade e de autonomia, que desresponsabilizam os actores, e em parte devidas a um clima cultural que continua a apostar muito pouco na educação de todos e ao longo de toda a vida como maior investimento que podemos fazer para virmos a ter um futuro melhor e uma sociedade mais justa. A escola é hoje, por tudo isto, um instrumento privilegiado de inclusão social, segundo as capacidades de cada um. Uma educação de qualidade para todos os portugueses deve continuar a constituir uma prioridade do desenvolvimento do país, uma preocupação central das famílias, dos responsáveis políticos, de toda a comunidade. A exigência deve ser colocada ao nível das capacidades e aspirações profundas dos alunos. Condicionantes e problemas hodiernos da escola 11. É sobejamente conhecida a dificuldade e a complexidade de educar nos tempos que correm. A escola acaba por ser muitas vezes reflexo da sociedade e dos sues problemas e sofre por isso, em si mesma, as condicionantes, as influências, as debilidades e as oscilações políticas, ideológicas, económicas, tecnológicas e culturais da sociedade em que está inserida. Corre constantemente o perigo de produzir resultados contrários aos que se propõe, reproduzindo as estruturas e as mesmas características da sociedade, das quais ela própria deveria ser um factor de mudança. Torna-se, por isso, necessário analisar e avaliar, com serenidade e profundidade, os problemas emergentes mais importantes que afectam, no nosso tempo, a vida da escola, para melhor os poder enfrentar. 12. O mundo contemporâneo caracteriza-se pela ausência de unidade na vida, até já lhe chamam “sociedade do fragmento”, pela renovação incessante dos saberes e das técnicas, pela multiplicação de pertenças e consequente relativização dos laços familiares, nacionais, culturais e religiosos. A mundialização e a globalização são realidades com as quais a criança, desde a mais tenra idade, se encontra confrontada. Desde muito cedo, ela se depara com muitos universos culturais contrastantes, muitas vezes opostos nos valores que apresentam. Tais universos, hoje em dia, não se apresentam afastados no espaço, mas estão patentes no ecrã do computador, pelo fácil acesso à Internet, aos vídeos e aos filmes, à música e às imagens que invadem o seu espaço de intimidade. Neste universo cultural, as próprias relações afectivas são marcadas pela errância e superficialidade e pela dificuldade de assumir compromissos pessoais estáveis e fortes. 13. O processo de globalização tem a sua influência na educação pelas muitas potencialidades que oferecem oportunidade de acesso e de intercâmbio de conhecimentos, tecnologias e bens culturais, mas exige assumir o risco de uma imitação generalizada das expressões culturais e dos comportamentos, pela imposição das subculturas momentânea e politicamente mais fortes. Causa particular preocupação a divulgação mediática e a imitação local de práticas violentas. A descoberta e o encontro pessoal com o «homem novo» constituem a experiência capaz de sarar estas feridas e fundamentar a comunhão na diversidade. 14. Por outro lado, nas sociedades ocidentais, a vida escolar, propriamente dita, inicia-se numa idade muito precoce da vida da criança, pelo que a missão de educar transfere-se paulatinamente para uma instituição com regras e práticas muito específicas, diferentes e cada vez mais afastadas ou não sintonizadas com as do círculo familiar, havendo o perigo de tal instituição se tornar como um fim em si mesma. Pela própria duração do processo de escolarização, a escola corre o risco de ser vista por muitas crianças e jovens não como um instrumento de humanização, mas como um longo “túnel”, um constrangimento insuportável a que se encontram condenados antes de passarem à ”vida verdadeira”. A nossa época encontra-se despojada das referências últimas, fustigada pela dispersão dos saberes, marcada pela volatilidade dos compromissos, contaminada pelo relativismo dos valores. É dever e missão dos agentes culturais mais conscientes e responsáveis do nosso tempo, nomeadamente aqueles que, nas escolas, educam as novas gerações, descortinar horizontes de referência, marcos orientadores, esquemas unificadores capazes de hierarquizar e ordenar saberes e valores e discernir critérios de avaliação de comportamentos com especiais implicações sociais. A seguir à família, a escola deve ser o lugar da assumpção das primeiras responsabilidades, em que a criança descobre que não está só, que existem solidariedades, que ela pode e deve assumir compromissos para ajudar a melhorar o curso do mundo. 15. A educação desde o nascimento à idade escolar constitui um dos períodos onde a presença familiar se torna fundamental e a que a sociedade deve estar bastante mais atenta e ser muito mais cuidadosa, evitando o aprofundamento das desigualdades sociais. Também a educação básica de nove anos carece de melhorias na qualidade das aprendizagens para todos, com rigor e exigência, diversificando estratégias de ensino e de aprendizagem e criando os itinerários mais adequados para todos poderem concluí-la com qualidade e sucesso. O ensino de nível secundário, apostado em diferenciar modalidades de ensino, o que pode trazer benefícios aos diferentes jovens que procuram os diversos cursos, não pode continuar a perder caudais enormes de alunos, devendo tornar-se muito mais atractivo e socialmente útil, com propostas educativas estimulantes e ambiente de trabalho contínuo e exigente. O ensino superior, a braços com mudanças profundas na estrutura e na pedagogia, na esteira da aplicação do “Processo de Bolonha”, corre riscos sérios de degradação da sua qualidade, caso não se melhorem substancialmente as práticas de ensino e de aprendizagem, não se apoie muito mais rigorosamente o trabalho autónomo de cada estudante e não se melhorem as condições quotidianas de pesquisa e trabalho individual e em grupo por parte dos estudantes. A expansão das oportunidades de educação e formação ao longo da vida, um movimento muito positivo da sociedade portuguesa, precisa de ser amplamente apoiado por profissionais competentes e por processos de validação e certificação de competências pautados pela qualidade e não por qualquer deriva de facilitismo. Esta educação devia constar entre as prioridades da acção das empresas e muitas outras organizações sociais. De facto, a qualificação permanente das pessoas pode constituir um importante sustentáculo da sua liberdade, da sua capacidade para aceder ao emprego e do pleno exercício da sua responsabilidade social. As escolas, os professores, os pais, as autarquias, as associações profissionais, culturais e outras de interesses socioeconómicos, a comunidade circundante dos estabelecimentos de ensino, não estão ainda suficientemente articulados entre si, mormente a nível local, para favorecer um clima educativo sadio e para combater o ambiente de permissividade e de descrédito que se instalou em muitas instituições escolares. As desarticulações entre estes agentes têm tido consequências dramáticas para uma aprendizagem de qualidade, quer na “idade escolar” quer ao longo de toda a vida e com a vida. Os esforços articulados e solidários de cada comunidade são decisivos para uma nova aposta na educação e para a melhoria da escola portuguesa. 16. O Estado tem sido, por vezes, em virtude das políticas dos diversos governantes, um obstáculo à melhoria da qualidade da escola portuguesa, e isto por vários motivos: – as reformas educativas sustentam-se frequentemente em trabalhos técnicos de gabinetes que infundem no sistema, por imposição linear imediata, mudanças que substituem outras mudanças ainda não devidamente implementadas nem avaliadas. Assim se lança ou favorece o caos permanente e a insegurança nos profissionais docentes que trabalham nas escolas; – as medidas são impostas, sem valorizar a diversidade de escolas e contextos e desprezando a liberdade de actuação dos professores, pais, autarquias e outros agentes locais, com projectos educativos próprios; – não se respeita o princípio da subsidiariedade e tudo se determina do centro para a periferia, concedendo, a custo e de modo sempre tímido, alguma autonomia e liberdade de actuação às escolas, o que leva os profissionais docentes a desvalorizar e desacreditar a sua capacidade de acção e de melhoria da qualidade da educação; – este quadro de desresponsabilização e até de descrédito acerca do trabalho dos docentes a todos penaliza e impede uma evolução positiva mais concertada. Sendo o Estado parte do problema, ele terá de ser também parte da solução, pelo que se exige, neste campo, muito mais ousadia e inovação aos diversos grupos políticos, pois sucessivos governos têm sido incapazes de encontrar um modelo de actuação de um estado regulador, articulado com um sistema onde reine a liberdade, a autonomia e a responsabilidade dos professores e dos actores sociais que com eles cooperam. A necessária liberdade de aprender e ensinar 17. Em todo este contexto, ganham força a necessária reivindicação da liberdade, constitucionalmente consignada, de aprender e ensinar, tanto para as escolas estatais como para as escolas privadas, todas elas prestando um serviço público, bem como as exigências de uma sociedade democrática plural que não pode deixar de favorecer e apreciar projectos alternativos válidos. Não é legítimo analisar a questão da educação e do ensino, designadamente ao nível básico e secundário, à luz das leis do mercado. A educação e o ensino não são mercadorias para se transaccionarem comercialmente, mas decorrem fundamentalmente de quadros antropológicos de referência e de sistemas de valores. Os seus custos não são custos de produção, mas de formação e crescimento de pessoas a integrar socialmente e que contribuirão com o seu saber, o seu saber fazer e o seu quadro de valores para o desenvolvimento da sociedade. É, portanto, à sociedade no seu conjunto que cabe o ónus da formação dos seus membros. Tal não quer dizer, todavia, que o interesse público em matéria de educação e ensino se confunda com ensino público estatal. “A perfeição do sistema educativo português não se atingirá quando todas as crianças e jovens frequentarem uma escola estatal. Caminhar-se-á para essa perfeição quando a sociedade gerar instituições de qualidade, com projecto educativo próprio e claramente definido, de modo a que os pais possam escolher em nome desse projecto educativo” . A educação é um direito e um dever primordial dos pais, competindo-lhes, por isso, participação na definição dos projectos educativos das escolas. Compete ao Estado facilitar, promover, regular democraticamente e financiar todas as instituições escolares que se enquadram legalmente no sistema educativo e que contribuem para a formação das crianças e jovens de Portugal. O Estado não tem, porém, o direito de impor currículos exaustivos, programas ideologicamente direccionados e processos educativos exclusivos, contrários à legitima e necessária autonomia das diferentes comunidades e instituições educativas. O critério deve ser o da qualidade, quer dos projectos e processos educativos, quer de cada uma das escolas concretas, comprovada pelo seu agir quotidiano, e não de quaisquer imposições arbitrárias da administração educativa. A escola católica – serviço da Igreja à sociedade 18. A escola católica, que mais directamente nos diz respeito, não se pode dispensar de ser escola de qualidade e reivindica legitimamente o seu lugar de direito no espaço educativo, pelo papel histórico de uma escola ao serviço de todos, independentemente da sua origem social, pela sua capacidade inovadora nos processos e meios educativos, pelo valor e seriedade dos resultados obtidos na educação dos alunos e no seu aproveitamento escolar e, sobretudo, pela preferência manifestada pelos pais, sempre que os filhos a ela possam aceder. 19. Todas as escolas católicas estão ao serviço da missão da Igreja e são chamadas, por isso, a assumir a sua missão evangelizadora. Todo o ambiente da escola, como comunidade educativa, deve estar impregnado dos valores cristãos e as actividades, curriculares e extracurriculares, ordenadas e iluminadas pela fé cristã em diálogo com a cultura e com a vida. “A escola católica, que tem como missão primária formar o aluno segundo uma visão antropológica integral, apesar de estar aberta a todos e respeitando a identidade de cada um, não pode deixar de apresentar a sua perspectiva educativa, humana e cristã” . Não é possível educar cristãmente sem ajudar os alunos a adquirir um conhecimento objectivo e científico do mundo e da vida. Mas também não é possível educar cristãmente apenas com base em conhecimentos científicos. À luz de Jesus Cristo, o cristão procura o sentido do mundo, quer no seu fundamento ontológico quer enquanto interacção e expressão de todas as realidades científicas, técnicas, sociais, culturais e religiosas. “Transmitir uma cultura não se pode fazer sem a transmissão, ao mesmo tempo, daquilo que é o seu fundamento e o âmago mais profundo, a saber, a verdade e a dignidade, reveladas por Cristo, da vida e da pessoa humana, que encontra em Deus a sua origem e o seu fim. Deste modo, os jovens descobrirão o sentido profundo da sua existência, e poderão conservar em si a esperança” . 20. O projecto educativo da escola católica depende principalmente da presença motivada e activa de testemunhas do encontro vivo com Cristo e da adesão pessoal e comunitária ao Senhor da história e do universo. “A profissão do educador possui uma característica específica: a transmissão da verdade. E esta característica atinge o seu sentido mais profundo no educador católico. Para ele, qualquer verdade é sempre a participação da única Verdade. A comunicação da verdade, como realização da sua vida profissional, transforma-se no carácter fundamental da sua participação na missão profética de Cristo que ele prolonga no seu ensino” . Membro constitutivo do Povo de Deus, o educador cristão participa, por inerência, da missão santificadora e educativa da Igreja. Por tal motivo, vive o seu trabalho educativo “como vocação pessoal na Igreja e não apenas como exercício de uma profissão” . Em todas as dimensões da sua acção educativa deve estar reflectida a imagem do ser humano conforme o Evangelho de Cristo. 21. Os educadores cristãos têm, por isso, o dever de cuidar da sua preparação e formação contínua e permanente, quer no âmbito científico, metodológico e pedagógico das disciplinas que leccionam, quer procurando, pelos mais diversos meios, esclarecerem-se e crescerem na fé e na sabedoria e doutrina cristãs. “A viva consciência desta formação religiosa é necessária ao leigo, porque dela dependem não só as suas possibilidades de fazer apostolado, mas também de exercer convenientemente um dever profissional, especialmente tratando-se de uma missão educativa” . 22. Os serviços e instituições da Igreja responsáveis pelas escolas católicas têm o dever de cuidar que esta formação seja regular, acessível e ministrada por pessoas competentes nas diversas matérias científicas e pedagogicamente preparadas para o fazer. A formação cristã e doutrinal será proporcionada a todos pelos meios mais aptos e acessíveis, e no respeito por cada educador e pela sua caminhada pessoal em relação à fé e à Igreja. Também os trabalhadores não docentes devem merecer igual cuidado na sua formação, pelo papel positivo que desempenham na comunidade educativa. Um olhar de esperança no futuro 23. É com muita esperança que olhamos o futuro da escola e da educação em Portugal. Acreditamos que é possível e urgente credibilizar as instituições educativas escolares, dignificar e conceder mais autonomia e responsabilidade ao trabalho dos profissionais docentes, melhorar os resultados escolares e criar ambientes mais estimuladores de um trabalho contínuo, exigente e de permanente revelação humana de todos e de cada um dos alunos, envolver mais os vários actores sociais de cada comunidade no investimento de uma educação de qualidade para todos e ao longo de toda a vida e com a vida. 24. A educação de todos os portugueses e ao longo de toda a vida, voltamos a repeti-lo, deverá ser referencial paradigmático em que urge repensar a própria instituição escolar e as dinâmicas educativas em que devem participar todas as instituições sociais de cada comunidade. A nossa esperança radica numa educação antropologicamente fundada, que se oriente pela educação integral de cada pessoa, em liberdade, num quadro de convivência solidária, em ambientes escolares de árduo trabalho e pedagogicamente estimulantes, em que os professores sejam educadores competentes e eticamente fundados e dedicados. Em que os alunos trabalhem, aprendam e sejam educados para uma inserção social participativa, crítica e criativa e em que as comunidades locais acalentem, apoiem e estimulem a aprendizagem de todos ao longo de toda a vida. 25. É fundamental clarificar, também ao nível escolar, para onde vamos, com quem vamos e por que caminhos, onde e em quê ou quem radicamos as nossas convicções e ancoramos a nossa esperança, que ser humano queremos ajudar a formar. Todavia, as respostas às necessidades que o futuro nos reserva não podem, independentemente das convicções religiosas ou ideológicas de cada um, ignorar nem menosprezar aquilo que o ser humano sempre foi e é na sua natureza ontológica, na sua unidade antropológica e na diversidade das suas expressões culturais e históricas. A clareza das ideias e a justeza das acções a empreender no peregrinar dos seres humanos no mundo são factores decisivos da sua identificação como vértice da criação e condição do seu desenvolvimento colectivo. 26. A todos aqueles que têm responsabilidades na estruturação, organização e regulamentação do sistema educativo português, apelamos a um profundo respeito pela autonomia das instituições escolares, em nome do princípio da subsidiariedade que deve reger as relações entre os vários intervenientes no processo educativo. 27. Fazemos um especial apelo aos pais para que não descurem nunca e a nenhum pretexto a educação dos seus filhos. Para isso, intervenham construtivamente na escola, participem nas reuniões para que são convocados, dialoguem com os professores e organizem-se em associações de pais que trabalham legalmente e de modo positivo com as escolas onde estudam os seus filhos. 28. A todos os que, nas diversas instituições educativas, culturais e religiosas, nas diversas associações políticas, nos vários meios de comunicação social assumem responsabilidades cívicas, exortamos a que contribuam para uma reflexão aprofundada sobre as finalidades, os objectivos, os caminhos e os meios da educação escolar no nosso País, não esquecendo a sua inserção em espaços culturais, políticos e económicos mais vastos. 29. A todos aqueles que estudam, trabalham ou estão, de algum modo, envolvidos nas estruturas e instituições educativas, ou delas beneficiam, queremos deixar uma palavra de incentivo e de esperança no futuro. Com vigilância, prudência, trabalho, amor e dedicação, todos podemos contribuir para que a escola cumpra, efectivamente, a missão a que está destinada – a formação integral e o desenvolvimento harmonioso das nossas crianças e jovens. 30. À Virgem Maria, modelo de mãe, educadora e mestra, confiamos os problemas, os desafios e as responsabilidades lançados à escola como instância de desenvolvimento cultural e de procura da verdade libertadora. Ela, que é a Sede da Sabedoria, nos ensinará e guiará pelos caminhos a trilhar na edificação do ser humano à imagem do Seu Filho. Fátima, 13 de Novembro de 2008 _____________________ D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa, A Escola Católica ao serviço da missão da Igreja (Conferência pronunciada no Fórum “Risco de Educar”), Lisboa, 28 de Janeiro de 2007. Bento XVI, Carta à Diocese de Roma, 21 de Janeiro de 2008. Bento XVI, Discurso aos Bispos da Eslovénia, durante a visita «ad limina», 24 de Janeiro de 2008. Bento XVI, Carta à Diocese de Roma, 21 de Janeiro de 2008. D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa A Escola Católica ao serviço da missão da Igreja (Conferência pronunciada no Fórum “Risco de Educar”), Lisboa, 28 de Janeiro de 2007. Bento XVI, Mensagem aos participantes na Assembleia Plenária da Congregação para a Educação Católica, 21 de Janeiro de 2008. João Paulo II, XIV Congresso Internacional do Ensino Católico (OIEC), 5 de Março de 1994. Congregação para a Educação Católica, “O leigo católico, testemunha da fé na escola, nº. 16, Roma, 15 de Outubro de 1982. Idem Ibidem, nº 37. Idem Ibidem, nº 62.

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