Nota da CEP sobre o problema do consumo de Drogas

1. Desde há muito tempo que a sociedade portuguesa se debate com um problema que, sendo universal, constitui preocupação para os jovens, as famílias, as instituições, a sociedade e a própria Igreja. Há imensas pessoas, jovens e adultos, que se deixam “agarrar” pelo consumo de produtos que, parecendo trazer consigo a libertação de situações de angústia, acabam por destruir completamente aqueles que se lhes entregam. O consumo de drogas ilícitas constitui um dos grandes flagelos deste virar de milénio. A Igreja não lhe pode ser indiferente. 2. Apesar de todo o sofrimento que o problema da droga traz consigo, consideramos positivo o facto da larga maioria dos homens e das mulheres, nomeadamente os jovens, recusarem os paraísos artificiais proporcionados pelo uso e abuso de estupefacientes; congratulamo-nos com o esforço dedicado de todos aqueles que se empenham, quer na prevenção das toxicodependências, quer no combate ao tráfico e ao branqueamento de capitais; damos graças a Deus sempre que alguém consegue recuperar a sua liberdade ao tratar-se dessas autênticas doenças do comportamento que são as toxicodependências; reconhecemos que há boas razões de esperança, apesar de todos os problemas ligados à droga; a sociedade portuguesa cria menos exclusão social do que no passado, apesar de manter uma estigmatização do toxicodependente, o que é sempre lamentável; reafirmamos, porém, que na origem de muitos consumos, para além da degradação social de tantas famílias, está muitas vezes o culto do prazer fácil, uma visão redutora da liberdade, o conceber a experiência como factor único do conhecimento e a abertura a facilidades sem fronteira como forma de afirmação pessoal, como recentemente afirmou João Paulo II: ” a droga é muitas vezes a consequência do vazio interior: é a rejeição, renúncia ou perda de orientação que, em geral, leva ao desespero. Eis porque a droga não se vence com a droga, mas é precisa uma vasta acção de prevenção, que substitua a cultura da morte pela cultura da vida. É necessário oferecer aos jovens e às famílias razões concretas de empenho e sustentá-los de maneira eficaz nas suas dificuldades de cada dia”. 3. A Igreja acompanha com atenção este fenómeno social que envolve a todos e que é causador de um profundo mal estar, até pela aparente incapacidade em resolvê-lo. Considera no entanto ser necessário dar atenção aos 95% dos jovens que não consomem, o que exige que a política da droga se não centre, quase exclusivamente, nos 5% de consumidores. Também se deve distinguir entre consumidor ocasional, consumidor habitual e toxicodependente, para não tratar a todos de igual maneira. Julgamos que a prevenção primária – a educação é questão fundamental – é uma prioridade absoluta, quer a nível das famílias, quer das associações juvenis nomeadamente da Igreja, quer das escolas. Deve actuar-se nas consciências, na educação para valores e no próprio sistema de valores, e não apenas na eventual informação sobre os malefícios da droga. É necessária a clarificação dos conceitos. Descriminalização, despenalização e liberalização são coisas diferentes e que não podem ter o mesmo sentido ético e o mesmo peso nas decisões políticas. Descriminalizar é não considerar crime o simples consumo de droga, com a gravidade do juízo moral e as consequências penais previstas na lei para cada género de crime. Mas o consumo de droga, mesmo não sendo considerado crime, continua a ser ilícito e punido com penas adequadas previstas na lei. Descriminalizar não significa despenalizar. E muito menos pode significar liberalização Liberalizar o consumo significaria considerá-lo permitido pela lei, o que acarretaria a liberalização progressiva do próprio tráfico. 4. Foi recentemente aprovada pela Assembleia da República uma Lei que descriminaliza o consumo. Reconhecemos a importância do objectivo visado com esta Lei: sem despenalizar nem liberalizar o consumo, tratar pedagogicamente o consumidor, orientando-o para processos de recuperação e impondo-lhe penas, pedagogicamente integráveis no referido processo. Mas as leis devem prever todas as consequências concretas da sua aplicação. A confusão entre descriminalização, despenalização e liberalização, a que esta lei pode levar, gera a falsa convicção de que a droga deixa de ser proibida, podendo levar a um aumento do consumo; não nos parece que a Lei afaste completamente o perigo de confusão entre consumidor e o pequeno traficante. Para que esta Lei dê os resultados procurados, precisa de ser acompanhada de uma acentuada política de esclarecimento e prevenção. É preciso que todos colaborem para tirar desta legislação o maior número de frutos positivos. Alguns sectores da sociedade vêm exigindo um referendo sobre esta legislação. Esta pretensão denuncia a consciência da complexidade da matéria e a necessidade de um debate alargado sobre ela. Reconhecemos que o referendo é um direito dos cidadãos, no quadro constitucional vigente. Embora a Conferência Episcopal Portuguesa não esteja entre as entidades que o pedem, se o referendo se vier a realizar, a Igreja dará o seu contributo apropriado. 5. Afirmamos claramente que o tráfico de drogas e o branqueamento de dinheiro a ele ligado são terríveis crimes contra a humanidade, que é preciso combater de forma enérgica e adequada. Por outro lado, o drama da toxicodependência exige de todos uma séria reflexão sobre a sociedade que estamos a construir, abrangendo as políticas educacionais e sociais, os modelos de sociedade e os paradigmas de felicidade e de liberdade. Esta guerra da droga decide-se, em grande parte, na batalha da educação inspirada em valores culturais e religiosos. Nesta circunstância, permitimo-nos lançar alguns apelos: · Às famílias pede-se uma generosidade acrescida no fortalecimento dos laços comunitários e afectivos e no realismo dos modelos que propõem aos seus filhos, para não criar neles frustrações descompensadoras; · Aos legisladores e às autoridades exigem-se medidas oportunas de prevenção, na escola, na rua, nos clubes. Não são suficientes as medidas de prevenção de riscos. Pede-se, igualmente, o combate sem tréguas ao tráfico, investindo aí todos os meios técnicos disponíveis e não poupando ninguém que se abrigue à sombra de interesses ou de posto social; · Aos jovens pede-se que resistam e ajudem outros a resistir à tentação da busca da felicidade através de caminhos alienados e alienantes; · Às autoridades e às organizações sociais pede-se que sejam intensificados todos os esforços, tanto na educação para uma vida livre de drogas, como no tratamento, na reabilitação e reinserção social; · À Comunicação Social pede-se o seu contributo na formação de uma consciência social, radicada numa visão cultural de dignidade da pessoa humana, verdadeiro contexto do repúdio colectivo do universo da droga; · Ás comunidades cristãs pede-se para se inserirem nas correntes de acolhimento e tratamento dos toxicodependentes, criando também iniciativas para a sua reinserção social. Por outro lado sentimos que as iniciativas da Igreja neste campo devem ser tomadas em parceria com muitas outras iniciativas que na sociedade civil se desenvolvem. É no avaliar e compartilhar com outros que se consegue maior eficácia. A discussão a propósito da legislação agora aprovada é, apenas, mais um momento de um esforço contínuo, em que não podemos esmorecer. É preciso combater todos os egoísmos que procuram lucros fáceis, no tráfico ou no tratamento, menosprezando a dignidade da pessoa humana. Para a Igreja trata-se do desafio da fraternidade praticada que continuará a apoiar e acompanhar programas de recuperação caracterizados pela seriedade de processos e métodos, já existentes e com experiência comprovada ou a criar. Que o trabalho de todos, em prevenir a toxicodependência, em tratar os toxicodependentes e em reinserí-los na sociedade, seja para todos o fundamento da esperança. Fátima, 16 de Novembro de 2000

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